Caligrafia

 

  • Foi a tia que escreveu esse bilhete?
  • Não. Fui eu.
  • Não acredito! Essa letra toda certinha, linda, é da minha tia.
  • Fui eu que escrevi!

Eu me esforcei muito para reproduzir a caligrafia de minha mãe e ficava orgulhosa quando as pessoas confundiam nossas letras. Na época, todo o meu empenho era só para provar que eu fazia uma linda letra também. Queria copiá-la e achava justo fazer isso, afinal trago em mim o seu nome. Somos Ellen – ela com um ‘l’ só, enquanto a grafia do meu leva dois ‘ll’. Anos depois, descobri que minha atitude era muito mais por orgulho da mãe que eu tinha e pela maneira como ela se transformava em espelho para mim. De alguma forma, foi ela quem me provocou a desenvolver todas as minhas melhores habilidades.

Mamãe nasceu numa grande família e não lhe faltou o mimo dos avós, dos tios, da mãe e do irmão. Aprendeu desde novinha a fazer manha e pedir carinho ao mesmo tempo em que desenvolveu um “Eu quero!” bastante acentuado. Assim ela criou um mundo cor-de-rosa, com histórias que sempre acabavam bem.

Casou-se apaixonada por um homem cheio de romantismo, mas com pouca habilidade para ser chefe de uma família. A menina mimada, do mundo cor-de-rosa, não perdeu nem o sorriso nem o olhar maroto e deu conta de criar as duas filhas e manter seu casamento. É certo que seu marido não lhe trazia segurança financeira, mas ele a pegava pela cintura e dançavam Moonlight Serenade todos os anos, para comemorar com ela a data do primeiro beijo.

Professora em colégio estadual, especializada em alfabetização infantil, Dona Elen fazia da vida profissional seu alicerce. Uma de suas maiores realizações era, em outubro, promover a festa da entrega do primeiro livro. Como ela se orgulhava de ver ‘suas’ crianças lendo. Seus cartazes eram bem feitos e seu jeito de ensinar extremamente criativo. Ela inventava jogos, atividades e até materiais para facilitar o aprendizado. Lembro-me de vê-la sair com as crianças, em fila, para ir à biblioteca, numa época em que as salas de aula tinham cerca de 40 alunos ou mais. Em 1981, a Secretaria da Educação de São Paulo, ofereceu-lhe o prêmio de Melhor Professora do Estado. Cá pra nós, merecidamente.

Também organizava caravanas e levava seus alunos para assistir à gravação do programa Silvio Santos. Muitas de suas crianças saíram dos estúdios com prêmios, de bicicleta a tênis Montreal. A felicidade era imensa! Até hoje é comum seus ex-alunos a procurarem para contar sobre sua vida, agradecê-la ou até pedir ajuda com algum problema com seus filhos.

Eu adorava participar da vida dela. Dei algumas aulas e por pouco não segui o magistério. Ajudava a corrigir as provas e me vestia de palhaço na entrega dos livros para aumentar a sua festa. Ia à sua sala de aula para contar como surgiu o Dia das Mães e outras datas do calendário festivo e participava das atividades que ela criava para o recreio. Ver minha mãe em atividade sempre me encheu de orgulho.

Na juventude encontrei nela uma grande amiga e aprendemos a dividir muitos dos sabores da vida. Assistir a jogos de futebol e de vôlei pela TV, ver filmes românticos comendo pipoca e acompanhar novelas… e em meio a essas simples atividades, tínhamos gostosas conversas. O dia a dia nos rendeu muitas boas lembranças e um elo impossível de ser quebrado.

Em casa, nada de “Dona Elen”. Ela sempre foi carinhosamente chamada de ”Gorda”. Ela trouxe da escola o jeito de lidar com as crianças. Tornou-se a tia preferida e, mais tarde, uma avó deliciosa, daquelas que todo mundo quer ter uma igual. Nossa infância foi recheada de passeios e grandes recordações. Piquenique com toalha quadriculada, passeios nos parques, brincadeiras de rua, farra em casa. E quando jogava conosco qualquer passatempo ou jogos de tabuleiro, não dava ‘mole’, queria ganhar da gente a qualquer custo!

Sempre preferiu lanches e coca-cola a comidas saudáveis. Disputava conosco o maior chocolate, o melhor sorvete e não dividia seu pacote de pipoca. Por quê? Porque a vida deve ser divertida e saborosa! E é exatamente assim que pessoas falam sobre ela, a ‘tia Gorda’, com seu sorriso fácil.

E olhando para ela, eu me peguei muitas vezes perguntando: “Como pode uma pessoa que experimentou tão pouco da vida, que conheceu tão poucos lugares, foi a poucos restaurantes diferentes, teve tão poucas oportunidades de estar em grandes eventos, e ainda assim encontrou no seu pequeno mundo tantos sabores capazes de arrancar dela tanta alegria?”

A resposta é simples: Todos nós crescemos. Ela não. E a visão da criança sobre a vida é muito mais interessante do que a do adulto. O experimentar, todos os dias, novidades faz com que a criança tenha uma luz diferente a cada manhã. Não ter barreiras para se expor, cair de bunda e não se envergonhar, responder a um comentário que não gostou com o simples ato de mostrar a língua, amar sem motivo, enfim, ter a liberdade de ser o que é.

Não importa o quanto a vida tenta – e muitas vezes consegue – lhe passar uma rasteira. Ela se levanta acreditando que foi apenas uma brincadeira. Ri de seus próprios erros ou problemas e conta suas histórias de forma a deixá-las divertidas. Ela nos fez acreditar eternamente no Papai-Noel, no coelho da Páscoa, no mundo cor-de-rosa e no romantismo do casamento.

Trago tanta coisa dela em mim. As sutilezas da vida, o amar e respeitar as crianças e ser uma delas, brincar, independentemente da minha idade, acreditar no final feliz de cada situação, rir de mim mesma, não ter medo de abrir um sorrisão, acreditar no outro e, especialmente, encontrar nas pequenas coisas, grandes realizações.

Texto publicado no livro “O quanto dela trago em mim”, da Oficina do Livro Editora.